sexta-feira, 30 de outubro de 2009

FECHADO NA CATACUMBA - H.P. Lovecraft

Não sei de crença mais absurda do que essa associação convencional dos fatos simples às coisas serenas e banais de que parece imbuída a psicologia das multidões. Em conseqüência de um bucólico lugarejo yankee, um inepto e obtuso agente funerário de aldeia e um descuido desastroso no interior de um jazigo tumular, nenhum leitor de mediano entendimento podia esperar outro desfecho que não alegre, embora grotesco ato de comédia. Mas só Deus sabe como a tremenda história de George Birch, cuja morte agora me permite contá-la, apresenta aspectos frente aos quais as nossas mais sombrias tragédias são perfeitamente simples, leves, pueris.

Birch, que abandonou a profissão, trocando-a por outra, em 1881, jamais tocava nesse assunto, fugindo do caso o mais que podia. Também o velho médico, Dr. Davis, que morreu há alguns anos, não emitira a menor palavra a respeito. Geralmente se atribuía tal atitude à aflição e ao abalo resultante de um fatídico descuido pelo qual Birch se fechara, durante nove horas, na catacumba do cemitério de Peck Valley e de onde só conseguiu escapar, empregando meios rudes e contundentes. Embora tudo isso fosse incontestável, havia outras coisas mais negras que o pobre homem me confiou, sussurrando, no seu delírio de ébrio já às portas da morte. Ele confiou em mim porque eu era o seu médico e também, provavelmente, por sentir a necessidade de desabafar-se com alguém depois do falecimento do Dr. Davis. Birch jamais se casara, nem contava parente algum neste mundo.

Até 1881, fora empreiteiro dos enterros, em Peck Valley e sempre se mostrara o tipo do individuo rude e primitivo de modos e idéias. As práticas que ouvi se lhe atribuírem, hoje ninguém as acreditaria possíveis, pelo menos, em uma cidade, e mesmo Peck Valley teria estremecido de espanto se soubesse ao certo dos inescrupulosos processos do seu coveiro exclusivo, tais como, por exemplo, a subtração dos custosos tecidos amortalhantes, favorecida pela tampa fechada do caixão e a falta de respeito sacrílega na colocação e arranjo dos restos mortais no ataúdes que fornecia, nem sempre fabricados no comprimento adequado. Mas, acima de tudo, o coveiro era moroso, relaxado e mau profissional. Apesar disso, não penso que fosse, no fundo, mau sujeito. Julgo-o simplesmente duro de inteligência e ação, bronco, desmazelado e beberrão, como a presente história
o demonstrará à sociedade, e além disso, sem o mínimo grau de imaginação comum à maioria dos seres humanos, dentro do limite fixado pelo bom senso.

Dificilmente sei por onde começar o caso de Birch, uma vez que não possuo prática qualquer de narrador. Mas como tenho forçosamente de fazê-lo, principiarei por aquele frio dezembro de 1880, quando os campos gelaram de tal forma que impediram de cavar-se sepulturas até o advento da primavera e conseqüentemente reamolecimento do solo. Felizmente, a aldeia possuía pequenas proporções, o que tornava muito baixo o seu coeficiente de mortalidade. Assim, foi possível dar-se todas as cargas fúnebres do enterrador local um abrigo provisório na única catacumba do cemitério. Com a inclemência do tempo, Birch ficou dobradamente lerdo e parecia superar-se, a si mesmo, de relaxamento nos diversos misteres da sua profissão. Jamais construíra ele ataúdes tão grosseiros e mal ajustados, nem mais flagrantemente descurara antes os cuidados indispensáveis com a enferrujada fechadura da cripta, cuja porta ele costumava abrir com um safanão e fechava com desleixados pontapés.
Afinal veio o degelo e as sepulturas puderam ser cavadas laboriosamente para os silenciosos frutos humanos, safra da impiedosa segadora eterna e que pacientemente esperavam o repouso final da última morada. Birch, embora maldizendo o afã, começou a remoção dos cadáveres, numa desagradável manhã de abril, interrompendo-a, porém, antes do meio-dia, devido à pesada chuva que cegava o cavalo da carreta, e depois de só ter baixado um único defunto ao seio da terra. Este era Darius Peck, nonagenário, cuja cova ficava perto da catacumba. O coveiro resolveu começar, no dia seguinte, com Matthew Fenner, velhinho miúdo que tinha o seu túmulo também não muito distante. Acabou, porém, adiando o serviço para três dias depois, só voltando a trabalhar na Sexta¬feira Santa, dia quinze. Não sendo supersticioso, nenhuma importância deu à data, se bem que, depois da história, sempre se recusou a fazer qualquer serviço de importância neste fatídico dia. Certamente, os acontecimentos daquela noite mudaram por completo, o feitio de George Birch.

Então, na tarde de Sexta-Feira Santa, quinze de abril, o nosso homem se dirigiu à catacumba, com o cavalo a puxar a carroça, a fim de apanhar o caixão de Matthew Fenner. A verdade é que Birch já gostava da bebida, conforme ele próprio o confessou mais tarde, muito embora, naquele tempo, ainda contraíra o vício desbragado pelo qual procurou esquecer, na embriaguez, certos fatos penosos. O agente funerário sentia-se, então, bastante entontecido e abstrato que esquecia o necessário incitamento ao seu cavalo que, vendo-se assim dignificantemente conduzido, relinchava, batia com as patas no solo e remexia continuamente a cabeça, molestado pela chuva. Entretanto, o dia mostrava-se claro e a aventura soprava, o que pôs o coveiro contente, com a idéia de abrigar-se, ao abrir a porta de ferro e penetrar na cripta cavada no flanco da colina. Um outro não teria gostado daquele recinto úmido e malcheiroso, com oito esquifes dispostos cuidadosamente ao centro, mas Birch tinha a alma já calejada pelo ofício e só se preocupava em não errar a sepultura de cada um. Jamais esquecera os protestos levantados, quando os parentes de Hanna Bixby, desejando transportar-lhe os restos para o cemitério da cidade para onde se haviam mudado, encontraram, sob a lápide de Hanna, a urna do Juiz Capwell.

O interior da catacumba mergulhava-se em densa penumbra. Birch, no entanto, possuía excelente vista e não confundiu o caixão de Fenner com o de Asaph Sawyer, embora fosse este muito semelhante àquele. Com efeito, o ataúde de Sawyer destinava-se primitivamente a Matthew Fenner, mas, à última hora, Birch pusera-o de lado, achando-o demasiado frágil e tosco pois, num impulso de sentimentalismo agradecido, lembrou-se de quando o velhinho Fenner o ajudara em uma falência, cinco anos antes. Assim, deu ao seu bom protetor tudo o que de melhor a sua arte poderia produzir. Mas, sendo demasiado sovina para desperdiçar o material defeituoso, aproveitou o refugo, quando Asaph Sawyer morreu de febre maligna. Este não gozava de bom conceito, como cidadão, e muitas histórias corriam da sua quase desumana sede de vingança e da sua memória tenaz que o impedia de esquecer ressentimentos reais ou imaginários contra os desafetos. Assim, o empreiteiro fúnebre nenhum constrangimento sentiu em reservar-lhe o ataúde mal feito que, naquele momento, afastava para lado com um repelão, procurando o de Fenner.

Foi justamente então, quando punha as mãos no caixão do bom velhinho, que o vento bateu a porta, mergulhando tudo em negra escuridão. O estreito postigo só deixava uma fraquíssima claridade e nenhuma virtualmente se coava pela chaminé de ventilação do teto. O coveiro ficara, pois, reduzido a um tatear inconsciente, caminhando hesitante, entre os esquifes, na direção da porta. Neste débil lusco-fusco, fez tanger a enferrujada aldrava, sacudiu inutilmente as almofadas de ferro, espantando-se com a súbita resistência da maciça porta. Compreendeu logo a realidade da situação e pôs-se a gritar desesperadamente como se o cavalo, lá fora, pudesse fazer mais do que responder-lhe com relinchos agudos e desolantes. A lingüeta da fechadura, longamente desleixada, quebrara-se finalmente, fechando, na catacumba, a culpada vítima da própria negligência, como em ratoeira.

A coisa devia ter acontecido cerca das três horas e meia da tarde. Birch, dotado de temperamento fleumático e prático, não gritou por muito tempo, pondo-se logo a procurar, às apalpadelas, algumas ferramentas que lembrava haver visto amontoadas em um canto. Não há, contudo, certeza se ele avaliou de pronto todo o horror e a impressionante fatalidade da sua crítica situação, mas o simples fato de se ver encerrado em local fora do caminho de qualquer ser humano seria bastante para fazer perder a cabeça ao mais valente indivíduo. A tarefa do dia fora assim desgraçadamente interrompida e a não ser que a sorte trouxesse até ali algum excursionista errante, Birch teria de ficar enclausurado durante toda a noite e ninguém podia saber por quanto tempo mais. Logo que encontrou o monte de ferramentas, o enterrador escolheu um martelo e um escopo e voltou à porta, passando por sobre os caixões. O ar começara a ficar excessivamente empestado, mas ele não atentou em semelhante detalhe, tão ocupado estava em atacar o pesado e corroído metal da fechadura. Teria certamente então dado tudo por uma lanterna acesa ou um simples toco de vela, mas, na falta de qualquer iluminação bastante, martelava, às cegas, da melhor maneira que podia.

Percebendo, porém, que o fecho resistiria inexoravelmente, pelo menos a tão frágeis instrumentos, naquelas tenebrosas condições, Birch olhou em torno, na esperança de achar outros possíveis meios de safamento. A catacumba se cavava na encosta de uma elevação, de modo que o ventilador atravessava vários pés de terra, eliminando assim qualquer visibilidade de evasão por aquele lado. A clarabóia losangular, tendida bem alto, sobre a porta, na fachada de tijolos, parecia¬lhe mais suscetível de ser alargada, embora à custa de rudes esforços. Os olhos do homem nela se fixaram longamente, enquanto espremia o cérebro, em busca do meio de subir e alcançá-la. Não havia ali espécie alguma de escada e os nichos destinados a receber as urnas, situados nas paredes laterais e do fundo, não lhe dariam acesso, muito distantes, à parte superior da porta. Só restava, portanto, o uso dos próprios esquifes, à guisa de degraus. Fixando o pensamento nesse sentido, estudo o melhor meio de colocá-los. Calculou que a altura de três caixões superpostos lhe seria bastante para chegar à clarabóia, mas quatro lhe tornaria o trabalho ainda mais fácil. As urnas fúnebres era bem niveladas e podiam ser empilhadas solidamente. Sem mais demora, pôs-se a imaginar como deveria dispor os oito féretros para construir uma plataforma escalável, cujo piso superior se constituísse de quatro deles, verticalmente arrumados. Enquanto pensava, só lamentava não tê-los feito com absoluta solidez. Agora, se a sua imaginação chegou a desejar que os caixões estivessem vazios, é francamente duvidoso.

Finalmente, decidiu encostar uma base de três ataúdes à porta e colocar sobre esta duas camadas de dois féretros cada uma e, em cima de tudo, um único caixão, servindo de estrado. Tal disposição podia ser erguida com o mínimo de tropeços e lhe forneceria a altura desejada. Ainda melhor, assim só se utilizaria de dois caixões, na base, para suportar a superestrutura, deixando o terceiro, como um degrau disponível, para o caso de ser-lhe necessário maior altura. E o prisioneiro labutou, na penumbra espessa, erguendo os defuntos com nenhuma cerimônia, naquela muda de torre de babel. Vários féretros começaram a estalar no decurso da operação e Birch resolveu reservar o de Matthew Fenner, pela sólida construção, para encimar a pilha, de modo que, ao trabalhar na clarabóia, os seus pés encontrassem a superfície mais firme possível como apoio.

Por fim, a torre foi terminada e, com os braços doloridos, Birch fez uma pausa, durante a qual se sentou no primeiro degrau da estranha escada. A seguir, subiu cautelosamente, com as ferramentas, até a clarabóia, cujos bordos era m de tijolos e que, lhe parecia, não lhe seria difícil dilatar do suficiente para escapulir daquela fúnebre prisão. Ao ressoar das primeiras marteladas, o cavalo, lá fora, relinchou em tom que tanto podia ser de encorajamento como de mofa. Em ambas as hipóteses, a manifestação da alimária se tornava adequada, pois a imprevista tenacidade da camada de tijolos, de frágil aspecto à vista, simbolizava um verdadeiro comentário sardônico à falacidade das esperanças terrenas e exigia um trabalho merecedor dos mais acalorados incitamentos.

Caiu a noite, que encontrou o coveiro ainda mourejanto. Agora, trabalhava exclusivamente pelo tato, pois grandes nuvens repentinamente aglomeradas eclipsaram a lua. Embora o progresso geral fosse medíocre, ele se sentia animado com a extensão das erosões produzidas no alto e no fundo da clarabóia. Estava firmemente convicto, enfim, de que conseguiria libertar-se por volta da meia-noite. Abstraído de reflexões opressivas sobre o tempo, o lugar e a companhia empilhada sob os seus pés, Brich ia filosoficamente lascando os pétreos tijolos. Praguejava, quando um estilhaço o atingia no rosto e ria-se quando outros se projetavam sobre o cada vez mais enlevado cavalo que pastejava, amarrado ao cipreste. De vez em quando, julgava a abertura tão adiantada que tentava por ela passar o corpo e, ao assim proceder, tanto se remexia que os esquifes embaixo, dançavam e estalavam. Esperava, entretanto, não ter de elevar mais a plataforma por meio de um quinto ataúde, pois o buraco se encontrava no nível exato de ser transposto logo que as dimensões permitissem a passagem.

Devia ser, pelo menos, meia-noite, quando Birch decidiu empreender a travessia da clarabóia. Cansado e suarento, a despeito das inúmeras pausas, desceu ao chão e sentou-se um momento sobre o esquife inferior, a fim de reunir as forças para o esforço final e o salto para o exterior. O cavalo, faminto, relinchava repetida e fracamente, enquanto o seu dono fazia votos para que ele parasse com aqueles lúgubres apelos. Birch sentia-se paradoxalmente pouco entusiasmado. No momento de realizar a ambiciosa libertação, assautou-o um como quase medo de iniciá-la, pois a coisa se revestia de intemerata rudeza dos heróicos tempos medievais. Ao galgar de novo os caixões, já rachados, ele percebeu, apreensivo, o próprio corpo mais pesado ainda, especialmente quando, depois de atingir a plataforma, ouviu um estalo forte de madeira que acabava de ceder. Fora-lhe inútil escolher o caixão mais sólido para encimar o macabro andaime. Tão pronto voltara a descansar sobre ele o peso do corpo, a tampa rompeu-se, fazendo-o baixar duas jardas sobre uma coisa mole, de que jamais imaginara, um dia, haver de sentir, sob os pés, a muralhante e gosmenta friagem. Estonteado pelo barulho ou pelo fétido que se desprendera, vigoroso, até o lado de fora, o cavalo emitiu um berro estridente, demasiado selvagem para chamar-se um relincho, e mergulhou na noite de piche, louco de pânico, seguido do estrépito infernal da carroça, arrastada aos trambolhões cegos.

Naquela angustiosa situação, Birch se encontrava agora impotente para atravessar a clarabóia já alargada, mas resolveu reunir as energias para uma tentativa desesperada. Tendo conseguido agarrar-se à beira da abertura pela ponta dos dedos, dispunha-se a alcançar-se, pela força dos braços, quando notou uma estranha pressão como se alguém o puxasse para baixo, pelos calcanhares. Então, pela primeira vez, naquela noite, ele sentiu medo. Sim. Porque, embora se debatesse, esperneando furiosamente o mais possível, não conseguiu sacudir fora a misteriosa garra que lhe prendia os pés, em uma tração contínua. Dores horríveis, como de chagas cruéis, percorriam-lhe a barriga da perna e, em seus espírito, dançava, num vértice de horror supersticioso, a inequívoca realidade, a prova material; o lascar das tábuas, os pregos arrancados e todos os demais ruídos característicos da madeira que se parte. Não era, portanto, uma ilusão dos sentidos, um fenômeno alucinatório gerado pelas circunstâncias. Pô-se a lutar, dando de pernas, em contorções ainda mais frenéticas, até passar a um estado de semidesmaio, em que os seus desvairados movimentos continuaram, ao acaso, automáticos. De repente, sem saber como, viu-se livre, já com o corpo metido na clarabóia.

Somente o instinto o guiou, no trágico caminho sinuoso através da abertura e ao rastejar que seguiu o baque surdo da sua queda, no exterior, sobre o chão úmido. Birch não podia caminhar e a lua nascente deve ter testemunhado a horrível cena daquele homem delirante, arrastando os tornozelos em sangue, na direção do pequeno pavilhão do cemitério, os dedos espasmódicos enterrando-se na relva enegrecida, em pressa febril, o corpo, porém, respondendo com a clássica lentidão desesperante de que procura fugir dos fantasmas, nos pesadelos. Evidentemente, ali não havia perseguidor algum, pois que Birch estava só e acordado, quando Armington, o guarda da necrópole, atendeu a seu fraco batido à porta.
O guarda levou-o para uma cama de reserva e mando o filho, Edwin, chamar o Dr. Davis. O pobre empreiteiro de enterros se achava em perfeito estado de conhecimento, mas nada dizia sobre o acontecimento, murmurando apenas raras palavras como: “Ai! Meus tornozelos! Largue-me!... Fechado na catacumba...”. Pouco depois, chegou o médico com a sua maleta de remédios, fez perguntas insistentes ao ferido e removeu-lhe as roupas de cima, os sapatos e as meias. As feridas (ambos os artelhos se apresentavam horrivelmente dilacerados sobre o tendão de Aquiles) intrigaram grandemente o velho doutor e, a seguir, quase o aterrorizaram. O interrogatório, com efeito, ultrapassou o terreno médico e as mãos do esculápio tremiam visivelmente ao contribuírem os retalhados membros de espessas ataduras, como se ele quisesse, sobretudo, ocultar aquelas chagas, o mais depressa possível.

Realmente, as perguntas angustiosas e solenes do Dr. Davis tornavam-se mais do que estranháveis, pois deixavam bem patente a intenção de arrancar do infeliz coveiro até o mais insignificante detalhe da sua pavorosa aventura, o que era inadmissível em médico. Davis mostrava¬se singularmente ansioso pos saber se Birch tinha a certeza absoluta de quem era o caixão que servia de plataforma, de como ele o identificara em plena escuridão e finalmente, por que maneira o distinguira da duplicata de qualidade inferior, mais tarde ocupada pelo corpo do mal-afamado Asaph Sawyer. Em suma, por que artes o sólido ataúde de Fenner cedera assim tão facilmente? O profissional, antigo médico da aldeia, assistira, naturalmente, aos funerais de ambos, como também os havia atendido nas suas derradeiras enfermidades. Até mesmo no enterro de Sawyer, muito se admirara de como se arranjara o vingativo fazendeiro defunto para acomodar os longos ossos em tão diminuto caixão, feito sob as medidas do pequeno Fenner.

Após duas longas horas, o Dr. Davis partiu, insistindo com o paciente para convencer-se de que as suas feridas só poderiam ter sido causadas por pregos de pontas soltas estilhaços agudos de madeira. Nada mais explicaria o acontecido, com lógica e verossimilhança, acrescentou. Sobretudo, recomendou-lhe ainda falar o menos possível sobre o caso e, em nenhuma hipótese, permitisse que ouro médico lhe tratasse aqueles ferimentos. Birch seguiu esses conselhos o resto da sua vida, até que um dia, me contou a sua história. Depois de examinar-lhe as cicatrizes já velhas e esbranquiçadas, achei que ele fizera muito bem em manter-se discreto. Do acidente, o pobre homem saira aleijado, pois fora cortado o tendão principal, mas, para mim, a sua maior invelidez operou-se¬lhe na própria alma. De temperamento outrora tão fleumático, o seu raciocínio guardou, depois do fato, transtornos imperecíveis e comovia observar-se-lhe as reações e certas alusões causais, como “sexta-feira, catacumba, caixão” e outras palavras menos diretamente significativas. O seu cavalo assustado, regressara a casa, nas a razão do pobre homem nunca mais retornou ao lugar devido. Ele trocou a profissão, mas, para sempre, algo lhe ficou, penando-o. Talvez fosse apenas o medo, ou o medo envolto em espécie estranha de implacável remorso pelas más ações do seu passado. Ademais, a bebida só veio agravar o que ele tencionava aliviar com a embriaguez.

O Dr. Davis, ao deixá-lo, naquela noite, pegara uma lanterna e se dirigira à catacumba. A luz iluminava vagamente os destroços dos tijolos espalhados, a fachada esburacada e o velho cipreste, de cujo tronco ainda pendia o segmento do cabresto arrebentado pelo eqüino, em pânico. O trinco da pesada porta de ferro abriu-se à primeira pressão da maçaneta exterior. Endurecido pela antiga prática das autópsias, o médico entrou e correu o olhar em torno, contendo a náusea física e moral que o mau cheiro e tudo mais ali provocavam. De repente, deixou escapar um grito e, logo depois, teve um extremeção que lhe pareceu mais terrível do que um berro de dor. E correu desabaladamente para o pavilhão do cemitério, onde, contra todas as regras da compostura, agarrou o doente pelas roupas, levantando-o, com força, atirou-lhe uma série de cochichos frenéticos que entraram pelos ouvidos do ferido, fervilhantes como vitríolo.

— O caixão era de Asaph, Birch — sibilou-lhe o doutor, justamente como eu pensava. — Reconheci-lhe o cadáver pela dentadura a que faltavam incisivos superiores. Pelo amor de Deus, jamais mostre os seus ferimentos a quem for! O corpo estava completamente putrefeito, mas, ainda assim, nunca vi expressão tão nítida de vingança satisfeita como a das suas feições já enegrecidas. Nunca, juro-o, em toda a minha vida! Bem sabe o demônio tenaz que era lê para vingar-se. Ainda deve estar lembrado de como arruinou o velho Raymond, trinta anos depois da demanda de terras entre ambos e como matou, a pisadas, o cãozinho inofensivo que o perseguira, latindo, fez um ano em agosto... Era o diabo em figura de gente e penso que a sua teoria de olho por olho e dente por dente tinha tanta ferocidade que resistiu à própria morte. O seu ódio... meu Deus!... eu não o quisera, jamais, sobre mim!

Então, por que você o foi provocar, Birch? Por ter sido um sujeito miserável, não te censuro ter-lhe dado um caixão refugado. Mas sempre exageras as coisas! Há limites que se devem respeitar, a todo preço, e conhecias muito bem o tamanho do velhinho Fenner!

Nunca mais se me apagará da memória, enquanto vivo for, o quadro que então presenciei. O caixão de Asaph estava por terra, atirado longe. A sua cabeça esfacelada e tudo mais, dentro, resolvido. Já muita coisa neste mundo, mas uma, doravante, ficará insuperável!

Olho por olho! Francamente, Birch teve o que merecia. O crânio esmigalhado de Asaph embrulhou-me o estômago, mas a outra extremidade do corpo fez-me pior. Aqueles tornozelos cortados rentes para que o defunto coubesse no caixão feito para Matt Fenner!


Fonte: Revista Spektro

domingo, 25 de outubro de 2009

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Amor só de mãe

desta vez ao invés de escrever um conto vou postar um curta de terror.

é o "Amor só de mãe" do meu amigo Dennison Ramalho. Enjoy!!!



terça-feira, 14 de abril de 2009

Clive Barker - "Terror"

TERROR


Não há prazer como o terror. Se fosse possível sentar-se sem ser visto entre duas pessoas em qualquer trem, sala de espera ou escritório, a conversa ouvida rondaria uma e outra vez sobre este tema. Poderia parecer que se tratava de um assunto completamente distinto: a situação do país, um bate-papo despreocupado sobre as mortes na estrada, o aumento dos preços dos dentistas, mas pondo a nu a metáfora, a insinuação, ali, encerrada no coração do discurso, encontra-se o terror. Enquanto aceitamos sem discussão a natureza de Deus e a possibilidade de vida eterna, ruminamos alegremente as minúcias da miséria. A síndrome não tem limite, tanto nos banheiros como nas salas de aula, se repete o mesmo ritual. Com a inexorabilidade de uma língua que se retorce para explorar um dente dolorido, voltamos uma, duas ou mil vezes a nossos medos, nos sentando para discutir sobre eles com a impaciência de um homem faminto ante um prato cheio e fumegante.
Enquanto estava na universidade e tinha medo de falar, Stephen Grace aprendeu a falar a respeito de seu medo. De fato, não só a falar dele, mas também a analisar e dissecar cada uma de suas terminações nervosas em busca de pequenos terrores.
Nesta investigação teve Quaid como professor.
Era uma época de gurus. Nas universidades de toda a Inglaterra jovens de ambos os sexos procuravam por toda parte pessoas para seguir como cordeiros, Steve Grace foi simplesmente mais um. Teve a má sorte de encontrar Quaid como Messias.
Conheceram-se na sala de estudantes.
– O nome é Quaid – disse o homem que estava ao lado do Steve na barra.
– Oh.
– Você é...?
– Steve Grace.
– Sim. está na classe de ética, não é?
– Exato.
– Não o vi em nenhum dos outros seminários ou conferências de filosofia.
– É minha disciplina suplementar deste ano. Faço o curso de literatura inglesa. Não podia suportar a idéia de um ano na classe de nórdico antigo.
– Assim escolheu ética.
– Sim.
Quaid pediu um conhaque duplo. Não parecia tão rico, e um conhaque duplo arruinaria as finanças de Steve para a semana seguinte. Quaid o bebeu rapidamente e pediu outro.
– O que você bebe?
Steve estava acariciando meia caneca de cerveja morna, disposto a fazê-la durar uma hora.
– Eu nada.
– Sim.
– Estou servido.
– Outro conhaque e uma caneca de cerveja para meu amigo.
Steve não resistiu à generosidade de Quaid. Uma caneca e meia de cerveja em seu sistema mal nutrido serviria de grande ajuda para animar o tédio de seus próximos seminários sobre “Charles Dickens como analista social”. Só a idéia o fazia bocejar.
– Alguém deveria escrever uma tese sobre a bebida como atividade social.
Quaid escrutinou um momento seu conhaque e o deixou outra vez sobre o balcão.
– Ou como forma de esquecer.
Steve olhou para aquele homem. Devia ter uns vinte e cinco anos, cinco mais que ele. A mescla de roupas que vestia era surpreendente. Sapatos esporte andrajosos, calças de veludo cotelê, uma camisa entre cinza e branca que tinha conhecido dias melhores, e sobre tudo isso uma jaqueta de couro muito cara que se assentava mal em seu corpo alto e magro. Tinha o rosto largo e anódino, os olhos, de um azul leitoso, e tão pálidos que a cor parecia diluir-se nas escleróticas, de forma que só se podiam ver, atrás de seus óculos de lentes grossas, suas íris rasgadas. Lábios gordos, como os de Jagger, mas pálidos, secos e pouco sensuais. O cabelo, de um loiro sujo.
Steve pensou que Quaid podia passar por um traficante de drogas holandês.
Não levava livros. Eram a manifestação corrente das obsessões de um estudante, e Quaid parecia nu sem nada que indicasse como se divertia. Era homossexual, feminista, defensor das baleias ou um vegetariano fascista? No que estava metido, por Deus?
– Deveria ter escolhido nórdico antigo – disse Quaid.
– Por que?
– Nessa disciplina nem sequer se preocupam em pontuar os exames.
Steve não tinha ouvido falar disso. Quaid continuou dando detalhes:
– Limitam-se a tirar cara ou coroa. Se sair cara, satisfatório, coroa, aprovado com louvor.
Ah, era brincadeira. Quaid estava bancando o sabichão. Steve esboçou uma sorriso, mas a cara de Quaid não se alterou ante seu próprio rasgo de humor.
– Devia estar em nórdico antigo – repetiu. – Afinal de contas, quem necessita de Bishop Berkeley, Platão ou A...?
– Ou?
– É tudo uma merda.
– Sim.
– Eu o observei na classe de filosofia...
Steve começou a se intrigar com Quaid.
— Você nunca anota nada?
– Não.
– Pensei que ou tem uma segurança sublime em si mesmo ou, simplesmente, não se importa.
– Nada disso. Simplesmente estou totalmente perdido.
Quaid grunhiu e tirou um pacote de cigarros baratos. Isso tampouco era o habitual. Fumavam-se Gauloises ou Camel, senão, nada.
– Não é a verdadeira filosofia o que lhe ensinam aqui – sentenciou Quaid com manifesto desprezo.
– Não?
– Dão-nos uma colherzinha de Platão ou um pouco do Bentham, mas sem uma análise real. Com as qualificações pertinentes, é obvio. Parece-se com a besta: até os não iniciados lhes cheira um pouco a besta.
– Que besta?
– A filosofia. A verdadeira filosofia. É uma besta, Stephen. Não concorda?
– Não havia....
– É selvagem. Morde.
Rangeu os dentes, de repente tinha adotado uma expressão ardilosa.
– Sim, morde – repetiu.
Sim, gostou muito disso. Disse de novo como se lhe trouxesse sorte: “Morde”.
Stephen assentiu. Escapava-lhe o sentido da metáfora.
– Acredito que o que estudamos deveria nos rasgar. – Quaid estava se entusiasmando com o tema da educação castradora. – Deveria nos assustar, falsear as idéias sobre as quais temos que falar.
– Por que?
– Porque se fôssemos filósofos dignos não trocaríamos piadas acadêmicas. Não falaríamos de semântica, não utilizaríamos enganos lingüísticos para encobrir os problemas reais.
– O que faríamos?
Steve começava a pensar que se limitava a dar corda a Quaid. Mas este não estava com humor para brincadeiras. Tinha o rosto rígido: suas íris rasgadas se reduziram a pontos diminutos.
– Deveríamos nos aproximar da besta, Steve, não concorda? Sair para aplacá-la, acariciá-la, ordenhá-la...
– Isto... O que é a besta?
Quaid se exasperou com a pergunta.
– É o tema de qualquer filosofia que valha a pena, Stephen. São as coisas que tememos porque não as entendemos. É a escuridão que há atrás da porta.
Stephen pensou em uma porta. Pensou na escuridão. Começou a compreender onde Quaid queria chegar à sua maneira retorcida. A filosofia era uma forma de falar do medo.
– Deveríamos discutir sobre o que é inerente a nossas psiques – disse Quaid. – Senão... nos arriscamos a...
Subitamente a loquacidade o abandonou.
– O que?
Quaid contemplava sua taça de conhaque vazia como se quisesse vê-la encher-se de novo.
– Quer outro? – propôs Steve, rogando para que a resposta fosse negativa.
– A que nos arriscamos? – repetiu a pergunta. – Bom, acredito que se não sairmos para encontrarmos a besta...
Steve pressentiu que estava a ponto de lhe pôr a cereja no bolo.
– ... cedo ou tarde a besta virá e nos encontrará. Não há prazer como o terror. Enquanto ele for de outros.

As semanas seguintes, Steve fez algumas perguntas, sem lhes dar importância, sobre o misterioso senhor Quaid.
Ninguém sabia seu nome. Ninguém estava seguro de sua idade, mas uma das secretárias achava que tinha mais de trinta, o que lhe pareceu surpreendente.
Seus pais, Cheryl tinha ouvido dizer, estavam mortos. Assassinados, pensava ela.
Isto parecia constituir a soma de todo o conhecimento humano a respeito de Quaid.

– Devo-lhe uma bebida – disse Steve tocando o ombro de Quaid.
Ele olhou-o como se lhe tivessem mordido.
– Brandy?
– Obrigado.
Steve se encarregou das bebidas.
– Estive pensando.
– Nenhum filósofo deveria precisar dele.
– Do que?
– Do cérebro.
Ficaram conversando. Steve não sabia por que voltou a se aproximar de Quaid. O homem tinha dez anos mais que ele e pertencia a um clã intelectual distinto. Para ser honesto, provavelmente o intimidava. Sua conversa incessante sobre bestas o desconcertava. E, entretanto, queria mais: mais metáforas, continuar ouvindo aquela voz monótona lhe contar quão inúteis eram os professores, quão fracos os estudantes.
No mundo de Quaid não havia certezas. Não possuía gurus seculares e, evidentemente, nenhuma religião. Parecia incapaz de contemplar nenhum sistema, já fora político ou filosófico, sem cinismo.
Embora poucas vezes ria em voz alta, Steve sabia que em sua visão do mundo havia um humor amargo. As pessoas eram ovelhas e cordeiros, todos procuravam pastores. Naturalmente, para Quaid esses pastores eram pura ficção. Tudo o que existia na escuridão, fora do redil, eram os medos que se abatiam sobre o cordeiro inocente: esperando, pacientes como pedras, seu momento.
Devia duvidar de tudo menos do fato de que o terror existia.
A arrogância intelectual de Quaid era estimulante. Steve começou a se afeiçoar à facilidade iconoclasta com que destruía uma crença atrás da outra. Às vezes era doloroso quando Quaid formulava uma objeção irrefutável contra algum dos dogmas de Steve. Mas em poucas semanas o simples ruído de demolição parecia excitá-lo. Quaid estava limpando a floresta, destruindo as árvores, destroçando os restolhos. Steve se sentia livre.
Nação, família, Igreja, lei. Tudo reduzido a cinzas. Tudo inútil. Tudo enganos, cadeias e asfixia.
Só existia o terror.
– Eu temo, você teme, ele teme – gostava de dizer. – Ele, ela, isso teme. Não há ser consciente sobre a superfície do mundo que não conheça o terror mais intimamente que seu próprio batimento do coração.
Um dos alvos favoritos dos ataques de Quaid era outra estudante de filosofia e literatura inglesa, Cheryl Fromm. Espantava-se tanto ante suas observações mais ultrajantes como um peixe ante a chuva, e enquanto os dois se atiravam com unhas e dentes sobre os argumentos do outro, Steve se refastelava em seu assento e contemplava o espetáculo. Cheryl era, segundo a fórmula de Quaid, uma otimista patológica.
– Você está cheio de merda – dizia ela quando a discussão se animou um pouco – quem pode se importar que você se assuste com sua própria sombra? Eu não estou assustada. Sinto-me bem.
Certamente que estava. Cheryl era objeto de sonhos eróticos, mas era muito brilhante para que alguém ousasse abordá-la.
– Todos sentimos terror de vez em quando – respondia Quaid, e seus olhos leitosos estudavam cuidadosamente o rosto de Cheryl, espiando sua reação, tentando, Steve sabia, encontrar uma debilidade em sua convicção.
– Eu não.
– Nenhum medo? Nem pesadelos?
– De maneira nenhuma. Tenho uma boa família, não guardo esqueletos no porão. Nem sequer como carne, assim não me sinto mal quando passo junto a um matadouro. Não tenho nenhuma miséria a exibir. Isso significa que não sou real?
– Significa... – Os olhos do Quaid tinham a pupila rasgada de uma serpente. – Significa que sua segurança tem algo importante a ocultar.
– Outra vez com os pesadelos!
– Horríveis pesadelos.
– Especifique: defina os termos que utiliza.
– Não posso te dizer do que você tem medo.
– Então me diga de que você tem medo.
Quaid vacilou.
– No fim das contas, é impossível de analisar.
– Impossível de analisar? Não me faça rir!
Quaid voltou para seu tema predileto.
– O que eu temo é algo pessoal. Não tem sentido em um conjunto mais amplo. As imagens do meu terror, as imagens que me cérebro utiliza, se quiser, para ilustrar meu medo, são pouca coisa em comparação com o autêntico horror que está na raiz de minha personalidade.
– Eu tenho imagens – disse Steve. – Visões de minha infância que me fazem pensar em... – deteve-se, lamentando sua confissão.
– O que? – perguntou Cheryl. – Você se refere a coisas relacionadas com experiências ruins? A uma queda da bicicleta ou algo parecido?
– Talvez – admitiu Steve. – Às vezes me surpreendo pensando nessas visões. Não faço isso deliberadamente, só ocorre quando perco a concentração. É como se meu cérebro se dirigisse para elas de forma automática.
Quaid emitiu um leve grunhido de satisfação.
– Exatamente – disse.
– Freud escreveu sobre o tema – advertiu Cheryl.
– O que?
– Freud – repetiu, desta vez sublinhando as palavras, como se estivesse falando com um menino. – Sigmund Freud, pode ser que tenha ouvido falar dele.
O lábio do Quaid se enrugou com um desprezo não dissimulado.
– As fixações da mãe não resolvem meu problema. Os verdadeiros terrores que existem em mim, em todos nós, são anteriores à personalidade. O terror está presente antes que tenhamos consciência de nós mesmos como indivíduos. A unha do polegar, protegida no útero, sente medo.
– Você se recorda disso? – ironizou Cheryl.
– Talvez – replicou Quaid, mortalmente sério.
– O útero?
Quaid sorriu pela metade. Steve pensou que esse sorriso significava: “Sei que você não”.
Era um sorriso estranho, desagradável, que Stephen teria gostado de apagar de seus olhos.
– Você é um mentiroso – acusou Cheryl, levantando-se de seu assento e olhando por cima do ombro de Quaid.
– Sou o melhor – admitiu, convertido de repente em um perfeito cavalheiro.

Depois disso acabaram as discussões.
Não se falou de pesadelos, nem se discutiu sobre os terrores noturnos. Steve viu Quaid de forma irregular no mês seguinte e, quando o via, encontrava-se sempre em companhia do Cheryl Fromm. Quaid era educado com ela, até diferente. Já não vestia sua jaqueta de couro porque Cheryl odiava o aroma da pele dos animais mortos. Esta súbita mudança em suas relações desconcertou Stephen, mas atribuiu isso a sua escassa compreensão dos assuntos sexuais. Não era virgem, mas as mulheres continuavam constituindo um mistério para ele: achava-as contraditórias e enigmáticas.
Também estava com ciúmes, embora não quisesse admitir claramente. Doía-lhe que o gênio dos sonhos úmidos lhe roubasse tanto tempo de Quaid.
Também tinha outra sensação: o curioso pressentimento de que Quaid estava cortejando Cheryl por suas próprias e misteriosas razões. O sexo não era o que atraía Quaid, estava certo disso. Tampouco era seu respeito pela inteligência de Cheryl o que o fazia mostrar-se tão atento. Não, de algum modo a estava encurralando, isso era o que lhe dizia seu instinto. Estava preparando Cheryl Fromm para a morte.
E logo, ao fim de um mês, Quaid deslizou na conversa uma pequena observação a respeito do Cheryl:
– Ela é vegetariana.
– Cheryl?
– Cheryl, é obvio.
– Já sei. Ela disse faz tempo.
– Sim, mas nela não é um simples capricho. O tema a apaixona. Não pode olhar sequer o balcão de um açougue. Não toca em carne, não a cheira...
– Oh.
Steve estava perplexo. Aonde conduziria tudo aquilo?
– Terror, Steve.
– Da carne?
– Os indícios são diferentes em cada pessoa. Ela tem medo da carne. Diz que é tão sã, tão equilibrada... Merda! Veremos!
– Ver o que?
– O medo, Steve.
– Você não vai...?
Steve não sabia como expressar sua ansiedade sem parecer acusador.
– Machucá-la? Não, não vou lhe fazer nenhum mal. Qualquer prejuízo que lhe cause será estritamente auto-infligido.
Quaid o contemplava quase hipnoticamente.
– Está na hora de começarmos a confiar um no outro – prosseguiu. Aproximou-se um pouco mais. – Entre nós...
– Olhe, não acredito que você queira ouvir.
– Temos que tocar à besta, Stephen.
– Ao inferno com a besta! Não quero ouvir!
Steve se levantou para evitar a opressão do olhar de Quaid e dar por finalizada a conversa.
– Somos amigos, Stephen.
– Sim...
– Então respeite-o.
– O que?
– O silêncio. Nenhuma palavra.
Steve assentiu. Essa não era uma promessa difícil de cumprir. Não podia contar suas angústias a ninguém sem que rissem dele.
Quaid parecia satisfeito. Saiu correndo, deixando Steve com a sensação de que tinha entrado sem querer em uma sociedade secreta, cujos objetivos não tinha a mais remota idéia. Quaid fizera um pacto com ele e isso era perturbador.
Na semana seguinte não assistiu as aulas nem à maioria dos seminários. Não tomou notas, não leu livros nem redigiu trabalhos. As duas vezes que foi ao edifício universitário andava sigilosamente como um camundongo precavido, desejando não encontrar Quaid.
Não tinha por que sentir medo. A única vez em que viu os ombros encurvados de Quaid do outro lado do pátio estava distraído trocando sorrisos com Cheryl Fromm. Esta ria musicalmente, e sua risada era correspondida pelo eco da parede do departamento de história. Steve já não sentia ciúmes. Nem por todo o ouro do mundo teria desejado estar tão perto de Quaid, ser tão intimo dele.
O tempo que passava sozinho, afastado do bulício das classes e dos corredores lotados, fez que sua mente se tornasse ociosa. E seus pensamentos retornaram a seus temores, como a língua ao dente, a unha à ferida.
E também a sua infância.
Quando tinha seis anos, um carro o atropelou. As feridas não eram muito perigosas, mas a comoção cerebral o deixou parcialmente surdo. Foi uma experiência muito angustiante não compreender por que ficara isolado de repente do mundo. Era uma tortura inexplicável, e o menino pensou que isso seria eterno.
Em um momento sua vida tinha sido real, tinha estado cheia de gritos e risadas. Um momento depois tinha sido posto à margem, o mundo se transformou em um aquário, cheio de peixes que o olhavam boquiabertos com grotescos sorrisos. Ainda mais: havia ocasiões em que padecia do que os médicos chamam zumbido, um ruído estrondoso que lhe soava nos ouvidos. A cabeça se enchia dos ruídos mais estranhos, gritos e assobios que serviam de fundo aos movimentos do mundo exterior. Nesses casos o estômago revolvia, e era como se uma faixa de ferro lhe envolvesse a fronte, despedaçando seus pensamentos, separando as mãos da cabeça, a intenção da prática. Era tomado por uma onda de pânico, era absolutamente incapaz de entender o mundo enquanto o ruído uivava e chocalhava na sua cabeça.
Mas os piores terrores chegavam de noite. Às vezes despertava no que tinha sido (antes do acidente) o seio protetor de seu dormitório, descobrindo que os zumbidos tinham voltado enquanto dormia.
Abria os olhos desmesuradamente e o corpo se empapava de suor. A mente se enchia do ruído mais buliçoso, ruído que o prendia sem esperança de alívio. Nada podia sossegar sua cabeça e nada, ao que parecia, podia lhe devolver o mundo, a fala, a risada e o pranto.
Estava sozinho.
Esses foram a colocação, o nó e o desenlace de seu terror. Estava completamente só com sua cacofonia. Encerrado naquela casa, naquele quarto, naquele corpo, naquela cabeça, prisioneiro de uma carne surda e cega.
Isso era insuportável. Às vezes gritava de noite, sem saber que estava emitindo sons, e os peixes que tinham sido seus pais acendiam a luz e tentavam ajudá-lo, inclinando-se sobre a cama e gesticulando, fazendo feias caretas com suas bocas mudas ao tentar socorrê-lo. As carícias acabavam por acalmá-lo, com o tempo, sua mãe aprendeu a mitigar o pânico que se apoderava dele.
Uma semana antes de seu sétimo aniversário recuperou a audição, não totalmente, mas o suficiente para que lhe parecesse um milagre. O mundo recuperou sua nitidez, a sua vida recomeçou.
Ao menino custou vários meses para voltar a confiar em seus sentidos. Ainda despertava de noite como se previsse os ruídos de sua cabeça. Mas embora seus ouvidos zumbissem ante o som mais leve, o que lhe impediu de assistir aos concertos de rock com o resto dos estudantes, agora quase nunca percebia a sua leve surdez.
Lembrava-se dela, é obvio, e muito bem. Podia evocar o sabor do pânico, a sensação de ter uma faixa de ferro ao redor da cabeça. E ainda havia nela um resíduo do medo: à escuridão, de estar sozinho.
Mas todo mundo não tinha medo de estar sozinho? De estar completamente sozinho?
Steve sentia outro medo, muito mais difícil de superar. Quaid.
Em uma sessão reveladora, bêbado, tinha lhe falado de sua infância, da surdez, dos terrores noturnos.
Quaid conhecia sua debilidade: o caminho largo que conduzia até o coração do terror do Steve. Tinha uma arma, um pau com o qual podia golpeá-lo se fosse necessário. Talvez por isso, decidiu não falar com Cheryl (avisá-la, se era isso o que queria fazer) e certamente essa era a razão de que evitasse Quaid.
Este tinha um ar pérfido em certos momentos de mau humor. Nem mais nem menos. Parecia uma pessoa com a maldade dentro de si, muito dentro.
O melhor daqueles quatro meses observando às pessoas sem ouvi-las tinham sensibilizado Steve por causa dos olhares de soslaio, os sorrisos e o desprezo que revoam em suas caras. Sabia que a vida de Quaid era um labirinto, tinha gravado no rosto, em mil pequenos gestos, o mapa de suas complexidades.

A fase seguinte da iniciação de Steve ao mundo secreto de Quaid aconteceu quase três meses e meio depois. As aulas da universidade foram interrompidas durante as férias de verão, e os estudantes foram cada um para seu lado. Steve se dedicou a seu trabalho de verão habitual na gráfica de seu pai, eram horas longas e exaustivas fisicamente, mas lhe propiciavam um descanso indubitável. Tantas discussões lhe tinham saturado o cérebro, sentia-se como se o tivessem enchido de palavras e idéias. O trabalho na gráfica lhe permitiu aliviar-se de tudo isso pouco tempo, limpando o matagal de sua mente.
Foi uma boa temporada, mas logo voltou a pensar em Quaid.
Voltou para a universidade no fim de setembro. Havia poucos estudantes no campus. A maioria dos cursos não começavam até a semana seguinte, e no ambiente flutuava um ar de melancolia, sem a habitual multidão de jovens se queixando, falando ou discutindo.
Steve estava na biblioteca separando alguns livros importantes antes que seus companheiros de classe os pegassem. Os livros eram ouro puro no princípio do curso, com toda a bibliografia por ler, e a biblioteca da universidade pediria como sempre que se encarregassem dos títulos necessários. Esses livros vitais chegavam invariavelmente dois dias depois do seminário em que ia se falar do autor. Naquele ano, o último, Steve estava decidido a ser o primeiro na fila que se formasse para obter os poucos exemplares para os trabalhos de seminário que houvesse na biblioteca.
Falou-lhe uma voz familiar.
– Voltou logo ao trabalho.
Steve levantou a vista para encontrar-se com as íris rasgadas de Quaid.
– Estou impressionado, Steve.
– O que?
– Seu entusiasmo pelo trabalho.
– Oh.
Quaid sorriu.
– O que você está procurando?
– Algo sobre Bentham.
– Tenho Princípios de Moral e Legislação. Serve?
Era uma armadilha. Não, isso seria absurdo. Oferecia-lhe um livro. Como podia interpretar esse simples gesto como uma armadilha?
– Bem pensado. – E o sorriso se tornou ainda mais amplo. – Acredito que é o exemplar da biblioteca o que tenho. Darei para você.
– Obrigado.
– As férias foram boas?
– Sim, obrigado. E as suas?
– Muito gratificantes.
O sorriso tinha degenerado em uma linha magra entre....
– Deixou o bigode crescer.
Era uma nova manifestação do caráter doentio daquele espécime. Fino, espaçado e de um loiro sujo, subia e baixava sob o nariz de Quaid como se tentasse sair da face. Este pareceu ligeiramente perturbado.
– Fez isso pela Cheryl?
Agora sim que sua confusão foi total.
– Bom...
– Parece que teve boas férias.
Em sua expressão havia algo, além de confusão.
– Tenho umas fotografias maravilhosas – disse Quaid.
– Do que?
– Fotos de festas.
Steve não podia acreditar nos seus ouvidos. Cheryl teria domado Quaid? Fotos de festas?
– Algumas o surpreenderão.
Havia um pouco de vendedor de postais no comportamento de Quaid. Que demônios eram essas fotografias? Fotos feitas com filtro e desdobradas de Cheryl surpreendida lendo Kant?
– Não imaginei que você fosse fotógrafo.
– A fotografia se converteu em uma paixão para mim.
Fez uma careta ao dizer “paixão”. Havia uma excitação contida em sua atitude. Estava radiante de prazer.
– Tem que vir vê-las.
– Eu...
– Esta noite. E assim, ao mesmo tempo, pega o Bentham.
– Obrigado.
– Na minha casa. Passada a esquina do hospital de maternidade, na rua Pilgrim. Número sessenta e quatro. Depois das nove?
– De acordo. Obrigado. Cale Pilgrim.
Quaid assentiu.
– Não sabia que havia casas habitáveis na rua Pilgrim.
– Número sessenta e quatro.

A rua Pilgrim era desolada. A maioria das casas não eram mais que escombros. Algumas estavam em demolição. As paredes interiores expostas de forma pouco natural: papéis pintados rosa e verde pálido, as chaminés dos pisos superiores penduradas sobre abismos de tijolos fumegantes. As escadas não conduziam, nem de ida nem de volta, a nenhuma parte.
O número sessenta e quatro estava solitário. As casas adjacentes tinham sido demolidas e escavadas, deixando um deserto de pó de tijolos que algumas ervas, atrevidas e temerárias, tentavam povoar.
Um cão branco de três patas vigiava seu território ao redor daquela casa, deixando pequenas marcas de urina a intervalos regulares para delimitar seus domínios.
A casa de Quaid, ainda sem ter nada de palácio, era mais acolhedora que o ermo que a rodeava.
Beberam juntos um vinho tinto que Steve tinha levado e fumaram um pouco de erva. Quaid estava muito mais suave do que Steve jamais tinha visto antes, satisfeito de falar de trivialidades em lugar do terror, rendendo-se de vez em quando, inclusive contando alguma piada. O interior da casa estava nu. Não havia quadros na parede nem tipo algum de decoração. Os livros de Quaid, e tinha centenas, estavam amontoados no chão, e Steve não pôde descobrir com que critério. A cozinha e o banheiro eram primitivos. Toda a atmosfera era quase monástica.
Depois de um par de horas aprazíveis, a curiosidade se apoderou de Steve.
– Onde estão as fotos das férias? – perguntou, consciente de que arrastava um pouco as palavras, embora já não se importasse com isso.
– Ah, sim. Meu experimento.
– Experimento?
– Para ser sincero, Steve, não sei se deveria lhe ensinar isso.
– Por que não?
– Estou metido em algo sério, Steve.
– E eu não estou preparado para nada sério, é isso o que quer dizer?
Steve notava que a técnica de Quaid o envolvia, embora fosse óbvio e transparente o que estava fazendo.
– Não disse que não estivesse preparado...
– Que diabos é esse assunto?
– Fotos.
– De?
– Lembra-se da Cheryl?
– Imagens da Cheryl. Sei.
– Como ia esquecê-la?
– Não voltará para o curso.
– Oh.
– Teve uma revelação.
O olhar do Quaid parecia o de um louco.
– O que quer dizer?
– Sempre estava tão tranqüila, não é verdade? – Quaid falava dela como se tivesse morrido. – Tranqüila, simpática e pensativa.
– Sim, suponho que era tudo isso.
– Pobre puta! Tudo o que queria era um bom pó.
Steve sorriu como um menino ante as palavras obscenas de Quaid. Era chocante, era como ver um professor com o pênis pendurando para fora das calças.
– Passou parte de suas férias aqui.
– Aqui?
– Nesta casa.
– Você gostou?
– É uma vaca ignorante. Pretensiosa, fraca e estúpida. Mas não te daria, não te daria absolutamente nada.
– Refere-se a que não queria foder?
– Oh, não! Baixava as calcinhas fácil. Eram seus medos o que não...
A velha canção.
– Mas a convenci no seu devido tempo.
Quaid tirou uma caixa de trás de uma pilha de livros de filosofia. Nela havia um maço de fotos em preto e branco ampliadas ao tamanho de um postal. Passou a primeira série para Steve.
– Eu a prendi, Steve. – Quaid dizia sem emoção. – Para ver se podia obrigá-la a dar rédea solta a seus terrores.
– Que quer dizer com prendê-la?
– No piso de cima.
Steve se sentiu estranho. Podia ouvir muito brandamente um zumbido em seus ouvidos. O vinho sempre fazia a cabeça zumbir.
– Eu a prendi no piso superior – repetiu Quaid, – como experimento. Por isso aluguei esta casa. Não havia vizinhos que escutassem.
– Nenhum vizinho para escutar o que?
Steve olhou a imagem granulada que tinha na mão.
– Uma câmara oculta – explicou Quaid. – Nunca soube que estava fotografando.
A foto número um era de um quarto, pequeno e anódino. Alguns poucos móveis normais.
– Este é o quarto. Em cima daqui. Quente. Inclusive um pouco cansativo. Sem ruídos.
– Sem ruídos.
Quaid lhe deu a foto número dois.
O mesmo quarto. Agora não tinha quase móveis. Um saco de dormir estava estendido ao longo de uma parede. Uma mesa. Uma cadeira. Uma lâmpada nua.
– Foi assim que o preparei para ela.
– Parece uma cela.
Quaid grunhiu.
Terceira foto. O mesmo quarto. Sobre a mesa uma jarra de água. Em um canto, uma caixa mau coberta por uma toalha.
– Para que é a caixa?
– Ela tinha que fazer as necessidades.
– Sim.
– Com todas as comodidades – assinalou Quaid. – Não pretendia reduzi-la a um estado animal.
Até em sua bruma etílica, Steve captou a ironia de Quaid. Não pretendia reduzi-la a um estado animal. Entretanto...
Foto quatro. Sobre a mesa, em um prato, uma fatia de carne. Um osso sobressaindo.
– Boi – indicou Quaid.
– Mas, ela é vegetariana!
– Certo. Está ligeiramente salgado, bem feito e é de boa qualidade.
Foto cinco. O mesmo. Cheryl está no quarto. A porta está fechada. Está golpeando-a com os pés e com as mãos, seu rosto reflete uma intensa fúria.
– Deixei-a no quarto por volta das cinco da manhã. Estava dormindo: eu mesmo a levei para o leito. Muito romântico. Ela não sabia o que estava acontecendo.
– Prendeu-a ali?
– Claro. Um experimento.
– Não a avisou?
– Falamos do terror, já me conhece. Sabia o que era o que eu desejava descobrir. Sabia que eu precisava de cobaias. Entendeu em seguida. Assim que compreendeu o que eu trazia entre as mãos se tranqüilizou.
Foto seis. Cheryl está sentada em um canto do quarto, pensando.
– Acredito que pensava que poderia ter mais paciência que eu.
Foto sete. Cheryl olha a perna de boi. Lança olhares à mesa.
– Bonita foto, não acha? Olhe sua expressão de nojo. Odiava até o aroma de carne cozida. Ainda não estava faminta, naturalmente.
Oito: dormindo.
Nove: fazendo as necessidades. Steve se sentiu incomoda ao ver a garota sentada sobre a caixa, com as calcinhas nos tornozelos. Tinha marcas de lágrimas no rosto.
Dez: bebe água da jarra.
Onze: volta a dormir, de costas para o quarto, enroscada como um feto.
– Quanto tempo ficou no quarto?
– Esta foto foi tirada quando estava há quatorze horas no quarto. Perde muito rapidamente a noção do tempo. Não havia mudanças de luz. Seu relógio corporal se desregulou em seguida.
– Quanto tempo ficou ali?
– Até que confirmou minha tese.
Doze: acordada, passeia ao redor da carne que está sobre a mesa.
– Esta foi tirada na manhã seguinte. Estava acordada. A câmara tirava fotos a cada quatro horas. Olhe seus olhos...
Steve escrutinou mais de perto a fotografia. Havia um pouco de desespero em seu rosto: um olhar extraviado, selvagem. Pela forma com que contemplava a carne parecia tentar hipnotizá-la.
– Tem aspecto de doente.
– Está cansada, isso é tudo. De fato dormiu muito, mas isso só parecia deixá-la mais exausta que antes. Nesse momento já não sabe se é dia ou noite. E tem fome. Se passou um dia e meio. Está mais que um pouco faminta.
Treze: dorme outra vez, enroscada em uma bola ainda menor, como se quisesse tragar a si mesma.
Quatorze: bebe mais água.
– Troquei a jarra enquanto dormia. Dormia profundamente: poderia ter cantado e dançado e ela não despertaria. Perdida para o mundo.
Fez uma careta.
“Louco – pensou Steve. – Este cara está louco.”
– Deus, aquilo fedia! Sabe como cheiram às vezes as mulheres: não é suor, é outra coisa. Um aroma denso, de carne. Sangrento. Estava assim no final de sua estadia. Não era o que eu tinha planejado.
Quinze: toca a carne.
– Aqui se vê seu primeiro desfalecimento – disse Quaid com um júbilo tranqüilo na voz. – Aqui começa o terror.
Steve estudou a foto de perto. O granulado da cópia esfumava os detalhes, mas a pobre moça estava sofrendo, isso era certo. Tinha o rosto franzido, dividida entre o desejo e a repulsa, enquanto tocava a carne.
Dezesseis: voltava a estar na porta, lançando-se contra ela, e todo seu corpo tremia. Sua boca era uma careta negra de angústia, gritava para a porta inerte.
– Sempre que tinha que enfrentar a carne acabava me xingando.
– Há quanto tempo estava aqui?
– Quase três dias. Você está vendo uma mulher faminta.
Não era difícil apreciar. Na foto seguinte estava de pé, tranqüila, com os olhos longe da tentação da comida, todo seu corpo tenso ante o dilema.
– Você a está matando de fome.
– Pode-se suportar facilmente dez dias sem comer. Os gordos são freqüentes em qualquer país civilizado, Steve. Seis por cento da população britânica está obesa do ponto de vista clínico em um momento ou outro. De qualquer forma, ela estava muito gorda.
Dezoito: a garota gorda está sentada no canto do quarto, chorando.
– Aí começou a ter alucinações. Pequenos tiques mentais. Acreditava sentir algo no cabelo ou no dorso da mão. Às vezes ficava olhando para o ar sem ver nada.
Dezenove: lava-se. Está nua até a cintura, tem os peitos cheios, a cara desprovida de expressão. A carne de boi apresenta um tom mais escuro que nas fotos anteriores.
– Lavava-se com regularidade. Nunca passavam doze horas sem que se asseasse da cabeça à ponta dos pés.
– A carne parece...
– Passada?
– Escura.
– Faz calor no quarto, e há algumas moscas com ela. Encontraram a carne e depositaram seus ovos. Sim, está maturando perfeitamente.
– Isso fazia parte do plano?
– Claro. Se a carne lhe enojava quando estava fresca, qual não será sua repugnância ante uma carne podre? Este é o ponto crucial de seu dilema, não? Quanto mais espera para comer, mais nojo lhe dará o que tem para alimentar-se. De um lado está presa por seu horror da carne, e de outro, por seu terror da morte. Qual dos dois cederá primeiro?
Steve estava tão preso como ela.
Por um lado esta brincadeira começava a ficar muito pesada, e o experimento de Quaid se converteu em um exercício de sadismo. Por outro lado, queria saber até onde chegaria a história. Havia algo sem dúvida fascinante em ver uma mulher sofrer.
As sete fotos seguintes – vinte, vinte e um, dois, três, quatro, cinco, seis – refletiam a mesma rotina. Dormir, lavar-se, fazer as necessidades, olhar a carne. Dormir, lavar-se...
E logo veio a vinte e sete.
– Está vendo?
Ela agarra a carne.
Sim, agarrava-a, com a cara cheia de horror. A pata de boi parece mais que passada, está salpicada de ovos de mosca. Torcida.
Na fotografia seguinte tem a cara afundada na carne. Steve acreditou sentir o sabor da carne podre na garganta. Sua mente imaginou um fedor apropriado e criou um molho de podridão para saborear com a língua. Como Cheryl pôde fazer isso?
Vinte e nove: está vomitando na caixa do canto do quarto.
Trinta: está sentada e olhando a mesa. Está vazia. Atirou a jarra de água contra a parede. O prato está quebrado. O boi está atirado ao chão em um atoleiro putrefato.
Trinta e um: dorme. Tem a cabeça escondida entre os braços.
Trinta e dois: está de pé. Olhando outra vez para a carne, desafiando-a. A fome que sente está aparente no rosto. O nojo, também.
Trinta e três: dorme.
– Quantos dias agora? – perguntou Steve.
– Cinco dias. Não, seis.
Seis dias.
Trinta e quatro: É uma forma imprecisa que aparentemente se equilibra contra uma parede. Ou melhor a golpeia com a cabeça, Steve não pôde distinguir. Não tinha nenhuma intenção de perguntar. Algo nele não queria saber.
Trinta e cinco: dorme de novo, desta vez debaixo da mesa. O saco de dormir está em pedaços, farrapos de roupa e partes de estopa cobrem o quarto.
Trinta e seis: fala com a porta, a quem está do outro lado, sabendo que não obterá resposta.
Trinta e sete: come a carne rançosa.
Senta-se tranqüilamente sob a mesa, como um homem primitivo em sua cova, e morde a carne com os incisivos. Seu rosto volta a ficar sem expressão, todas as suas energias se concentram na decisão que tomou. Comer. Comer até que a fome desapareça, até que a angústia de seu estômago e o enjôo de sua cabeça desapareçam.
Steve contemplou a foto.
– Ela me surpreendeu – comentou Quaid – o súbito de sua derrota. Em um momento parecia estar tão resistente como sempre. O monólogo que recitou em frente a porta era a mesma mescla de ameaças e desculpas que proferia dia sim dia não. E então veio abaixo. Assim, de repente. Sentou-se sobre a mesa e comeu a carne até o osso como se fosse um prato fino.
Trinta e oito: dorme. A porta está aberta. Entra luz. Trinta e nove: o quarto está vazio.
– Para onde foi?
– Desceu as escadas. Entrou na cozinha, bebeu vários copos de água e se sentou em uma cadeira três ou quatro horas sem dizer uma só palavra.
– Falou com você?
– Como no passado. Quando começou a sair de seu estado amnésico. O experimento tinha acabado. Não quis lhe fazer mal.
– O que ela disse?
– Nada.
– Nada?
– Absolutamente nada. Durante muito tempo acredito que nem sequer percebeu que eu estava no quarto. Depois cozinhei umas batatas e ela as comeu.
– Não tentou chamar à polícia?
– Não.
– Nada de violência?
– Nada. Sabia o que eu tinha feito e por que. Não foi premeditado, mas tínhamos falado de experimentos parecidos em conversas abstratas. Na realidade não tinha sofrido nenhum dano. Talvez tenha perdido um pouco de peso, mas isso foi tudo.
– Onde ela está agora?
– Foi embora no dia seguinte. Não sei para onde.
– E o que tudo isso demonstrou?
– Absolutamente nada, mas me deu um interessante ponto de partida para minhas investigações.
– Ponto de partida? Foi só um ponto de partida?
Havia um asco manifesto no tom que Steve empregou com Quaid.
– Stephen...
– Podia tê-la matado!
– Não.
– Ela podia ter enlouquecido. Desequilibrada para sempre.
– Possível, mas improvável. Era uma mulher de muito caráter.
– Mas você pôde com ela.
– Sim. Era um passo que estava disposta a dar. Tínhamos falado que enfrentasse o seu medo. Assim aí estava eu, permitindo que Cheryl fizesse justamente isso. Nada importante, na realidade.
– Obrigou-a a fazê-lo. Senão, ela não teria passado por isso.
– Certo. Foi instrutivo.
– Ou seja, agora é professor.
Steve teria desejado evitar aquele tom sarcástico, mas não pôde. Sentia-se invadido pelo sarcasmo e a cólera, e experimentava um pouco de medo.
– Sim, sou professor. – Quaid observou Steve, de soslaio. – Ensino terror às pessoas.
Steve olhou para o chão.
– Está satisfeito com o que ensinou?
– E com o que aprendi, Steve. Também aprendi. É uma perspectiva muito emocionante, há um mundo de medos por investigar. Especialmente com sujeitos inteligentes. Inclusive racionalizando-os...
Steve se levantou.
– Não quero ouvir mais nada!
– Não? De acordo.
– Amanhã cedo tenho aula.
– Não.
– O que?
Um batimento do coração, um hesitação.
– Não. Não vá ainda.
– Por que?
Tinha o coração acelerado. Nunca tinha compreendido quanto temia Quaid.
– Tenho mais livros para lhe dar.
Steve notou que se ruborizava ligeiramente. O que tinha pensado um momento antes? Que Quaid ia derrubá-lo com um murro e experimentar com seus temores?
Não. Isso era uma idiotice.
– Tenho um livro sobre o Kierkegaard que você gostará. Vamos. Demoro dois minutos.
Quaid abandonou a sala sorrindo.
Steve se virou sobre seus quadris e começou a juntar as fotografias. O momento em que Cheryl agarrou pela primeira vez a carne podre era o que mais lhe fascinava. Tinha uma expressão no rosto totalmente distinta da mulher que ele tinha conhecido. Tinha marcada a dúvida, a confusão e um profundo...
Terror.
Era a palavra que Quaid usava.. Uma palavra asquerosa. Uma palavra obscena, associada a partir dessa noite à tortura infligida por ele a uma garota inocente.
Durante um instante Steve pensou que expressão teria seu próprio rosto enquanto examinava a fotografia. Não havia algo daquela mesma confusão em seus próprios traços? E talvez também algo daquele terror, à espera de ser liberado.
Ouviu um ruído a suas costas. Era muito suave, Quaid não podia tê-lo produzido.
A não ser que andasse sigilosamente.
Oh, Deus! A não ser que...
Colocaram um pano com clorofórmio contra sua boca e suas fossas nasais. Inalou involuntariamente, e os vapores lhe fizeram cócegas na pituitária e rompeu a chorar.
Uma mancha negra apareceu em um canto do mundo, fora da vista, e esse borrão começou a crescer, acompanhando o ritmo de seu coração cada vez mais acelerado.
No centro de sua cabeça “via” a voz de Quaid como se fosse um véu. Pronunciava seu nome.
– Stephen.
Outra vez.
– ...ephen.
– ...phen.
– ...hen.
– ...en.
A mancha ocupava todo o mundo. O mundo estava negro, tinha desaparecido. Da vista, da mente.
Steve caiu sobre as fotografias.

Quando despertou não estava consciente de sua própria consciência. Havia escuridão por toda parte. Ficou deitado durante uma hora com os olhos bem abertos antes de perceber que eles estavam abertos.
Como prova, mexeu primeiro os braços e as pernas, depois a cabeça. Não estava preso, como esperava, exceto pelo tornozelo. Decididamente, havia uma corrente ou algo similar ao redor de seu tornozelo esquerdo. Irritava-lhe a pele quando tentava afastar-se muito.
O chão que tinha abaixo era muito incômodo, e quando o investigou atentamente com a palma da mão percebeu que estava curvado sobre um grande ralo ou uma espécie de grade. Era de metal e, até onde lhe alcançavam os braços, tinha uma superfície completamente regular. Quando introduziu o braço pelos buracos do ralo não tocou nada. Só ar e vazio por baixo dele.

As primeiras fotos infravermelhas que Quaid tirou da prisão de Stephen mostravam sua exploração. Como tinha imaginado, o sujeito estava fazendo frente a sua condição muito racionalmente. Nada de histeria. Nada de blasfêmias. Nenhuma lágrima. Esse era o desafio em expor aquele sujeito em particular. Sabia com precisão o que estava ocorrendo, e reagiria com lógica ante seus temores. Certamente se protegeria com uma vontade mais difícil de dobrar que a de Cheryl.
Mas os resultados seriam muito mais gratificantes quando desabasse. Não se abriria então sua alma para que Quaid a visse e a tocasse? Aquele homem tinha dentro de si tantas coisas que ele desejava estudar...
Os olhos do Steve se acostumaram gradualmente à escuridão.
Estava aprisionado no que parecia uma espécie de conduto. Calculou que teria uns seis metros de profundidade e que era completamente redondo. Seria uma espécie de poço de ventilação para um túnel ou uma fábrica subterrânea? O cérebro de Steve apresentou o mapa da área da rua Pilgrim, tentando imaginar onde estava. Não lhe ocorria nenhum lugar.
Nenhum lugar.
Estava perdido em um lugar que não podia determinar nem reconhecer. O conduto não tinha marcas que pudessem servir de referência, e as paredes não apresentavam gretas nem buracos onde refugiar a consciência.
Pior ainda: estava curvado com os membros estendidos sobre um ralo suspenso sobre um poço. Seus olhos não podiam discernir nada da escuridão que tinha abaixo de si, parecia que o poço não tinha fundo. E só a magra rede do ralo e a frágil crrente que o amarrava a ela impediam a sua queda.
Viu a si mesmo em equilíbrio entre um céu negro vazio e uma escuridão infinita. O ar estava quente e viciado. Secou as lágrimas que lhe tinham aparecido nos olhos, deixando-os pegajosos. Quando começou a gritar pedindo ajuda, coisa que fez depois de chorar, a escuridão tragou as suas palavras.
Depois de gritar até enrouquecer voltou a tombar sobre o ralo. Não podia evitar de pensar que sob o frágil leito se encontravam as trevas mais absolutas. Era absurdo, naturalmente. “Nada é eterno”, disse em voz alta.
Nada é eterno.
E, entretanto, nunca saberia. Se caísse na escuridão absoluta que tinha a seus pés, cairia, cairia e cairia sem ver o fundo do poço. Embora se esforçasse por pensar em imagens mais brilhantes e otimistas, sua mente só evocava seu corpo precipitando-se pelo horrível poço, com o fundo a meio metro de seu corpo e sem que seus olhos o vissem ou seu cérebro o previsse.
Até que tocasse o fundo.
Veria luz quando sua cabeça estalasse pelo golpe?
Compreenderia a razão de sua vida e de sua morte no momento em que seu corpo se reduzisse a pedaços?
E logo pensou que Quaid não se atreveria.
– Não se atreverá! – gritou. – Não se atreverá!
As trevas tragavam com gulodice suas palavras. Por mais que gritasse, era como se nunca tivesse proferido um grito.
E logo lhe ocorreu outra idéia: uma autêntica perversidade. E se Quaid tivesse encontrado esse inferno circular para depositá-lo porque nunca o encontrariam, nunca investigariam? Talvez queria levar seus experimentos até o extremo.
Até o último extremo. A morte se encontrava no último extremo. E não seria esse o experimento definitivo de Quaid? Observar a morte de um homem: observar como crescia seu medo da morte, o filão primitivo do terror. Sartre escreveu que nenhum homem poderia conhecer jamais sua própria morte. Mas conhecer intimamente a morte alheia – contemplar as acrobacias que certamente realizaria a mente para disfarçar a amarga verdade, – essa era toda uma chave para descobrir sua natureza, não? Até certo ponto, isso prepararia um homem para sua própria morte. Viver de forma indireta o terror de outro era a forma mais segura e inteligente de tocar à besta.
“Sim – pensou, – Quaid poderia me matar por causa de seu próprio terror.” Steve encontrou um amargo consolo nessa idéia. Que Quaid, o experimentador imparcial, o futuro educador, estava obcecado pelos terrores porque o seu era ainda mais profundo.
Por isso tinha que observar outros a enfrentar seus próprios medos. Necessitava de uma solução, uma fórmula para fugir de si mesmo.
Pensar em tudo isto levou horas. Na escuridão o cérebro do Steve era como um azougue, só que incontrolável. Era-lhe difícil seguir o desenvolvimento de uma idéia por muito tempo. Seus pensamentos eram como peixes pequenos e rápidos, que lhe escorriam da mão assim que conseguia capturá-los.
Mas por baixo de cada dobra de pensamento se encontrava a decisão de deixar Quaid fora do jogo. Isso era certo. Devia conservar a calma, demonstrar que era um sujeito pouco interessante para seu estudo.
As fotografias correspondentes a essas horas mostravam um Stephen curvado sobre o ralo com os olhos fechados e o cenho ligeiramente franzido. Paradoxalmente, de vez em quando um sorriso aparecia por um segundo em seus lábios. Às vezes era impossível saber se estava dormido ou acordado, pensando ou sonhando.
Quaid esperava.
De quando em quando, os olhos do Steve se moviam sob suas pálpebras, um indício inconfundível de que estava sonhando. Quando o sujeito dormia era o momento de lhe dar a volta à churrasqueira...
Steve despertou assustado. Pôde ver perto de si uma terrina de água sobre um prato, e outra terrina cheia de papa de aveia morna e sem sal, ao lado. Comeu e bebeu agradecido.
Duas coisas ocorreram enquanto comia. Primeiro, o ruído que fazia ao comer soava muito forte dentro de sua cabeça, e segundo, notava certa pressão e rigidez nas têmporas.
Nas fotografias se via Stephen agarrando torpemente a cabeça. Tinha um arnês preso com o ferrolho fechado. Os bornes se afundam nos ouvidos, evitando que penetrasse qualquer ruído.
As fotos revelavam seu desconcerto. Logo sua ira. Depois seu medo.
Steve estava surdo.
Tudo o que podia ouvir eram os ruídos de sua cabeça. Os estalos de seus dentes. O ranger e o chapinhar da saliva no paladar. Os ruídos retumbavam em seus ouvidos como canhonaços.
Os olhos se encheram de lágrimas. Chutou o ralo sem ouvir o choque de seus saltos contra as barras metálicas. Gritou até que a garganta doeu como se estivesse sangrando. Não ouviu nenhum de seus gritos.
O pânico começou a fazer morada nele.
As fotos mostravam como surgiu. Tinha a cara avermelhada, os olhos muito abertos, os dentes e gengivas descobertas em uma careta.
Parecia um macaco assustado.
Invadiram-lhe todas as sensações familiares de sua infância. Recordava-as como os rostos de velhos inimigos: o tremor dos membros, o suor, a náusea. Desesperado, agarrou a tigela de água e derrubou na cabeça. Momentaneamente, a impressão da água fria afastou sua mente da escada para o pânico que subia. Voltou a tombar sobre o ralo, com o corpo como uma tabela, e se propôs a respirar devagar e profundamente.
“Relaxe, relaxe, relaxe”, disse em voz alta.
Em sua cabeça podia ouvir o estalo da língua. Também ouvia sua mucosa evoluir pelos passadiços do nariz obstruídos pelo pânico, que lhe tapava os ouvidos. Já podia identificar o suave e ligeiro vaio que se escondia atrás de outros ruídos. Era o som de seu cérebro...
Era parecido a esse espaço mudo que há entre as emissoras de rádio, era o mesmo gemido que se apoderava dele sob a ação da anestesia, o mesmo som que zumbia em seus ouvidos quando estava a ponto de dormir.
Seus membros ainda se retorciam convulsivamente, e só estava semiconsciente de como lutava contra os nós que o algemavam, indiferente ao fato de que as cordas lhe esfolassem as mãos.
As fotografias gravaram com precisão todas estas reações. Sua guerra contra a histeria: seus patéticos esforços por impedir que seus medos voltassem a sair. As lágrimas. As mãos ensangüentadas.
Finalmente, como tantas vezes lhe tinha ocorrido quando criança, o cansaço pôde mais que o pânico. Quantas vezes se deixou adormecer, incapaz de continuar lutando, com o sabor salgado das lágrimas no nariz e na boca?
O esforço tinha elevado o volume dos ruídos de sua cabeça. Agora, em vez de entoar uma canção de ninar, o cérebro lhe apitava e gritava para que dormisse.
Que bom era esquecer!
Quaid se sentia enganado. Certamente, pela velocidade de sua resposta ficava claro que Stephen Grace ia desmoronar em seguida. Na realidade, com poucas horas do experimento, já quase ruíra. E Quaid tinha apostado em Stephen. Depois de meses de preparar o terreno, parecia que seu sujeito ia enlouquecer sem revelar uma só chave.
Uma palavra, uma miserável palavra era tudo o que necessitava. Um pequeno sinal a respeito da natureza de sua experiência. Ou, melhor ainda, algo que sugerisse uma solução, um totem salvador, talvez uma prece. Certamente quando uma pessoa se vê arrastada para a loucura lhe acode algum salvador à boca. Deve haver algo.
Quaid esperava como a ave de rapina no cenário de um açougue, contando os minutos que restavam à alma agonizante, ansiando por um pedaço.

Steve despertou com a cabeça sobre o ralo. O ar ainda estava mais viciado, e as barras de metal se cravavam nas bochechas. Tinha calor e estava incomodado.
Continuou curvado tranqüilamente, deixando que os olhos voltassem a se acostumar com a sua volta. As linhas do ralo se afastavam em perfeita perspectiva até a parede do poço. A singela rede de barras em cruz lhe pareceu bonita. Sim, bonita. Acariciou as linhas para frente e para trás até que se cansou do jogo. Aborrecido, virou-se para ficar de barriga para cima, sentindo as vibrações do ralo sob seu corpo. Estava menos estável agora? Parecia balançar um pouco quando ele se movia.
Quente e suado, Steve desabotoou a camisa. Tinha o queixo molhado pela baba segregada durante o sonho, mas não se preocupou em secar-se E se estivesse babado? Quem iria vê-lo?
Tirou pela metade a camisa, e colocou nos pés os sapatos trocados.
Sapato: ralo: queda. Seu cérebro estabeleceu a relação. Sentou-se. Pobre sapato! Ia cair. Escorregaria entre as barras e o perderia. Mas não. Estava em perfeito equilíbrio entre os dois lados de um buraco do ralo, ainda podia recuperá-lo se tentasse.
Estirou-se para seu pobre, miserável sapato, e ao mover-se fez que o ralo mudasse de posição.
O sapato começou a escorregar.
– Por favor – suplicou, – não caia.
Não queria perder seu belo sapato, seu formoso sapato. Não devia cair. Não devia.
Ao estirar-se para agarrá-lo, o sapato se desequilibrou do lado do salto e caiu pela grade na escuridão.
Aquela perda lhe arrancou um grito que não pode ouvir.
Oh, se tivesse podido ouvir como caía seu sapato! Contar os segundos da queda. Ouvi-lo cair ruidosamente ao fundo do poço. Assim pelo menos teria sabido quanto teria que cair até morrer.
Não podia suportar mais. Deu a volta sobre o estômago e, de barriga para baixo, introduzindo os dois braços pelos buracos, gritou:
– Eu também cairei! Eu também cairei!
Não podia suportar ficar esperando cair na escuridão, no silêncio ele choramingava, só queria ir atrás de seu sapato pelo poço escuro até morrer, e acabar com o jogo de uma vez por todas.
– Eu vou! Eu vou! Eu vou! – exclamou.
Jurou-o solenemente.
Abaixo dele, o ralo se moveu.
Algo tinha se quebrado. A porca, corrente ou corda que prendia o ralo se partiu. Já não estava na horizontal, estava escorregando pelas barras que o inclinavam para o lado da escuridão.
Percebeu surpreso que não tinha mais os membros amarrados.
Ia cair.
O homem queria que caísse. O homem malvado... Como se chamava? Quake? Quail? Quarrel?
Em um gesto automático, agarrou o ralo com as duas mãos ao inclinar-se esta ainda mais. Afinal, não queria cair atrás do seu sapato. Melhor viver, um breve instante mais de vida, valia a pena...
A escuridão na borda do ralo era tão profunda... E quem sabia o que haveria nela?
Em sua cabeça se multiplicaram os ruídos do pânico. O batimento do coração, de seu maldito coração, a gagueira da mucosa, o chiado seco do paladar. As mãos, escorregadias de suor, estavam perdendo o controle. A gravidade o atraía. Exigia seus direitos sobre a massa daquele corpo, pedia que caísse. Por um momento, depois de jogar um olhar à boca que se abria a seus pés, acreditou ver monstros agitando-se no fundo. Criaturas ridículas, extravagantes, desenhos toscos, negro sobre negro. Infames imagens o olharam com malícia do fundo de sua infância e abriram suas garras para apanhá-lo pelas pernas.
– Mamãe! – chamou, quando suas mãos se soltaram e ficou a mercê do terror.
– Mamãe!
Essa era a palavra. Quaid a ouviu claramente, em toda a extensão de sua banalidade.
– Mamãe!
Quando Steve chegou ao fundo do poço era incapaz de julgar quanto estava cansado. No momento em que suas mãos se soltaram do ralo e soube que as trevas o tragariam, o cérebro se bloqueou. O instinto animal fez que seu corpo relaxasse, evitando qualquer ferida grave causada pelo impacto. O resto de sua vida, exceto as reações mais simples, estava destroçado, e os pedacinhos se ocultaram nas curvas de sua memória.
Quando por fim a luz apareceu, levantou o olhar para a pessoa que estava na porta, com uma máscara do camundongo Mickey, e sorriu. Foi um sorriso de menino, de agradecimento para com seu salvador engraçado. Deixou que o homem o agarrasse pelos tornozelos e o tirasse de rastros da grande habitação redonda em que estava curvado. Tinha as calças molhadas e sabia que se sujara enquanto dormia. Mas por isso mesmo o camundongo divertido lhe daria um beijo ainda maior.
A cabeça dançava sobre os ombros quando o tirou da câmara de tortura. No chão, ao lado de sua cabeça, havia um sapato. A uns dois metros e meio acima dele se encontrava o ralo de que tinha caído.
Aquilo já não significava nada para ele.
Deixou que o camundongo o sentasse em um quarto iluminado. Deixou que lhe devolvesse a audição, embora na realidade não a queria para nada. Era divertido contemplar o mundo sem som, o fazia rir.
Bebeu um pouco de água e comeu um pouco de bolo doce.
Estava cansado. Queria dormir. Queria a sua mãe. Mas o camundongo não parecia compreendê-lo, assim chorou e chutou a mesa e atirou os pratos e as taças ao chão. Logo correu para o quarto contiguo e atirou para ar todos os papéis que encontrou. Era bonito vê-los voar para acima e cair revoando. Alguns caíam para baixo, outros para cima. Alguns estavam escritos. Outros eram fotos. Fotos horríveis. Fotos que lhe causavam uma sensação muito estranha.
Absolutamente todas as fotos eram de gente morta. Algumas, de meninos pequenos, outras, de meninos já crescidos. Estavam caídos ou meio sentados, e tinham profundos cortes no rosto e no corpo, cortes que revelavam algo asqueroso, uma espécie de confusão de pedaços brilhantes e pedaços que supuravam. E ao redor dos mortos havia uma pintura negra. Não eram manchas definidas, mas salpicados, com impressões digitais e marcas de mãos e tudo muito caótico.
Em três ou quatro fotos se via o instrumento que tinha realizado os cortes. Sabia como se chamava.
Machado.
A cara de uma mulher tinha um machado afundado quase até o cabo. Havia um machado na perna de um homem, e outro atirado no chão de uma cozinha junto a um bebê morto.
Aquele homem colecionava fotos de mortos e de machados, coisa que a Steve pareceu estranha.
Essa foi sua última idéia até que o aroma muito familiar do clorofórmio invadiu sua cabeça e ele perdeu a consciência.


O sórdido corredor cheirava a urina rançosa e a vômito fresco. Era seu próprio vômito, cobria-lhe todo o peito. Tratou de levantar-se, mas as pernas tremiam. Fazia muito frio. A garganta doía.
Então ouviu passos. Parecia que o camundongo voltava. Talvez o levasse para casa.
– Levante-se, filho.
Não era o camundongo. Era um policial.
– O que faz aí embaixo? Já disse para você levantar.
Apoiando-se contra os tijolos desfeitos do corredor, Steve conseguiu ficar de pé. O policial o iluminou com uma lanterna.
– Jesus Cristo! – exclamou, com nojo pintado na cara. – Você parece uma autêntica merda. Onde mora?
Steve negou com a cabeça, olhando sua camisa empapada de vômito como um colegial envergonhado.
– Como se chama?
Não conseguia lembrar.
– Seu nome, garoto.
Estava tentando recordar. Se pelo menos o policial não gritasse tanto!
– Vamos, controle-se.
As palavras não tinham muito sentido. Steve notava que as lágrimas ardiam no fundo dos olhos.
– Casa.
Agora estava soluçando, sentia-se completamente desamparado. Queria morrer, deitar-se no chão e morrer.
O policial o agitou.
– Você está drogado? – perguntou-lhe, tirando Steve para a luz e lhe examinando a cara manchada de lágrimas.
– É melhor se mover.
– Mamãe! – chamou Steve. – Quero a minha mãe.
Essas palavras mudaram por completo o curso da conversa.
De repente, o espetáculo pareceu mais que repugnante ou lamentável ao policial. Aquele pequeno bastardo com os olhos injetados em sangue e o jantar na camisa estava deixando-o nervoso. Muito dinheiro, muita sujeira nas veias e nada de disciplina.
“Mamãe” foi a gota que encheu o copo. Socou Steve no estômago, um direto limpo, seco, funcional. Steve curvou choramingando.
– Cale-se, filho!
Outro murro arrematou a tarefa de nocautear o menino, e então lhe agarrou por uma mecha de cabelo e aproximou a cara do pequeno drogado à sua.
– Quer ser um pária, não é?
– Não, não!
Steve não sabia o que era um pária, só queria agradar o policial.
– Por favor – disse, a ponto de começar a chorar outra vez – , me leve para casa.
O policial pareceu surpreso. O menino não começou a defender-se nem a invocar seus direitos, como faziam quase todos. Estavam acostumados a acabar assim, no chão, com o nariz quebrado e chamando um assistente social. Aquele só chorava. Começou a ter um mau pressentimento. Possivelmente estava louco ou um algo parecido. E tinha dado uma surra no pequeno chorão. Bosta! Agora se sentia culpado. Agarrou Steve pelo braço e o levou para seu carro, do outro lado da rua.
– Entre.
– Me leve...
– Vou levá-lo para casa, filho. Vou levá-lo para casa.

No albergue procuraram entre a roupa do Steve alguma identidade sem encontrar nenhuma, depois desinfetaram o corpo caso tivesse pulgas e o cabelo caso estivesse infestado de lêndeas. Então o policial partiu, coisa que tranqüilizou Steve. Não tinha gostado daquele cara.
Os funcionários do refúgio falavam dele como se não estivesse na sala. Referiam-se a quão jovem era, discutiam a respeito da sua idade mental, suas roupas, seu aspecto. Logo lhe deram uma barra de sabão e lhe indicaram onde estavam os chuveiros. Permaneceu dez minutos sob a água e se secou com uma toalha suja. Não se barbeou, embora tivessem lhe deixado uma navalha. Tinha esquecido como se fazia.
Mais tarde lhe deram roupas velhas, que gostou. Não eram pessoas tão más, embora falassem dele como se não estivesse presente. Um daqueles homens inclusive lhe sorriu, era forte e tinha uma barba parda. Sorriu-lhe como a um cão.
As roupas que lhe deram estavam gastas. Eram muito pequenas ou muito grandes. E de várias cores: meias três-quartos amarelas, uma camisa de um branco sujo, calças feitas para um gordo, um pulôver puído e pesadas botas. Gostaria de vestir-se, vestiu duas jaquetas e dois pares de meias três-quartos quando não estavam olhando para ele. Sentia-se seguro com várias capas de algodão e lã envolvidos a seu redor.
Logo o deixaram com um bilhete para a cama na mão e ficou esperando a abertura dos dormitórios. Não estava impaciente como os que se encontravam com ele no corredor. Muitos gritavam incoerentemente acusações salpicadas de obscenidades e cuspiam uns nos outros. Eles o assustavam. Só queria dormir. Deitar-se e dormir.
Às onze, um dos guardas abriu a porta do dormitório e todos aqueles refugos correram para se deitar em uma cama de ferro onde passariam a noite. O dormitório, amplo e mal iluminado, cheirava a desinfetante e gente velha.
Esquivando-se dos olhos e dos braços agressivos dos outros, Steve encontrou uma cama mal feita, com uma fina manta atirada por cima, e se jogou para dormir. A seu redor, os homens tossiam, murmuravam e choravam. Recitavam suas orações jogados sobre um travesseiro cinza, olhando para o teto. Steve pensou que era uma boa idéia, e ficou rezando a oração de sua infância:

Doce Jesus, dócil e bondoso,
cuida deste menino pequeno,
te compadeça de mim...

Como era mesmo?

se compadeça de minha simplicidade,
permite que chegue até ti.

Isso o fez sentir-se melhor, e seu sonho, melancólico e profundo, foi como um bálsamo.

Quaid estava sentado na escuridão. O terror voltou a se manifestar, era pior que nunca. Tinha o corpo rígido de medo, tanto que nem sequer podia levantar-se da cama e acender a luz. Além disso, e se desta vez, desta vez entre todas as outras vezes, o terror fosse justificado? E se o homem do machado estivesse ali em carne e osso atrás da porta? Sorrindo-lhe como um bobo, dançando demoniacamente no alto das escadas, como o tinha visto em sonhos, dançando e rindo, rindo e dançando.
Não houve um só movimento. Nem rangidos na escada nem risadas tolas nas sombras. Não era ele, afinal. Quaid viveria até a manhã seguinte.
Tinha o corpo um pouco mais relaxado. Tirou as pernas do leito e acendeu a luz. O quarto estava efetivamente vazio. A casa permanecia em silêncio. Pela porta aberta podia ver a parte superior das escadas. Não havia nenhum homem com um machado, naturalmente.

Alguns gritos despertaram Steve. Ainda era noite. Não sabia quanto tinha dormido, mas os membros já não doíam tanto. Com os cotovelos sobre o travesseiro, levantou-se pela metade e olhou pelo dormitório para averiguar a que se devia a comoção. Quatro filas de camas mais à frente, dois homens estavam lutando. O motivo da discórdia não estava claro. Simplesmente lutavam corpo a corpo, obstinados como mulheres (o espetáculo fez Steve rir), gritando e puxando os cabelos. À luz da lua, o sangue de seus rostos e mãos se viam negros. Um deles, o maior, caiu sobre sua cama gritando:
– Não irei à rua Finchley! Você não me obrigará! Não me pegue! Não sou o que você quer! De verdade!
O outro não o escutava, era muito estúpido ou estava muito enlouquecido para compreender que o velho suplicava que o deixassem em paz. Animado pelos espectadores que se amontoavam em torno da briga, o atacante do velho tirou o sapato e açoitava com ele a sua vítima. Steve ouvia o impacto do salto contra a cabeça do homem. Cada golpe ia acompanhado de amostras de entusiasmo e de queixa minguantes por parte do velho.
Subitamente, os aplausos vacilaram pois alguém mais entrara no dormitório. Steve não podia distinguir quem era, a multidão reunida em torno da briga lhe impedia de ver a porta.
Nesse momento viu, entretanto, o vencedor elevar o sapato no ar com um grito final de “Cara!”.
O sapato.
Steve não podia afastar os olhos do sapato. Elevava-se no ar, volteando-se ao fazê-lo, e logo caía sobre os barrotes como um pássaro ferido. Steve o viu claramente, mais claramente do que tinha visto qualquer coisa durante muitos dias.
Caiu perto dele.
Caiu com um ruído retumbante.
Caiu de lado, igual ao seu. Seu sapato, que saiu do pé. Sobre o ralo. No quarto. Na casa. Na rua Pilgrim.

O mesmo sonho despertou Quaid. Sempre as escadas. Sempre se via olhando pelo túnel das escadas enquanto aquela visão ridícula, meio brincadeira e meio horror, avançava nas pontas dos pés para ele, revelando-se a cada passo.
Antes não tinha sonhado nunca duas vezes em uma só noite. Levou a mão por cima da borda da cama e procurou a garrafa que guardava por ali. Na escuridão bebeu dela um gole muito comprido.

Steve cruzou o matagal de homens furiosos sem se importar com os gritos ou os grunhidos e maldições do velho. Os guardas estavam custando a apaziguar os ânimos. Era a última vez que deixavam o velho entrar em Crowley, sempre criava problemas. Aquilo tinha toda a chance de acabar em briga, levaria horas para tranqüilizá-los de novo.
Ninguém perguntou nada a Steve enquanto ele passeava pelo corredor, cruzava a porta e entrava no vestíbulo do albergue. As portas estavam fechadas, mas o ar noturno, frio antes do amanhecer, refrescava ao penetrar pelas frestas.
A pequena recepção estava vazia, e pela porta Steve viu o extintor de incêndios pendurado na parede. Era vermelho e brilhante. Ao lado dele havia uma mangueira larga e negra, enrolada em um tambor vermelho como uma serpente adormecida. Ao lado, colocada sobre dois ganchos na parede, um machado.
Um machado muito bonito.
Stephen entrou no escritório. Perto dele ouviu o ruído de pés correndo, gritos, um assobio. Mas ninguém o interrompeu enquanto fazia amizade com o machado.
Primeiro lhe sorriu.
O fio curvado dele lhe devolveu o sorriso.
Depois o tocou.
O machado pareceu gostar da carícia. Estava empoeirado e não era usado a muito tempo. Muito tempo. Queria que o agarrassem, fizessem-lhe bajulações e lhe sorrissem. Steve o desprendeu com muito cuidado e o introduziu sob sua jaqueta para lhe dar calor. Logo saiu do escritório da recepção, atravessou a porta e saiu para procurar seu outro sapato.

Quaid voltou a despertar.

Steve levou pouco tempo para orientar-se. Deu um salto ao dirigir-se para a rua Pilgrim. Vestido de tantas cores brilhantes, com calças tão folgadas e botas tão estúpidas, sentia-se como um palhaço. Era um menino cômico, não é verdade? Riu de si mesmo. Estava tão engraçado...
O vento começou a feri-lo, deixando-o frenético ao lhe revoar no cabelo e lhe deixar os olhos tão frios como se fossem dois cubos de gelo nas conchas.
Começou a correr, saltar, dançar, brincar por entre as ruas brancas à luz das luzes, e escuras nos intervalos entre estas.
Agora me vê, agora não. Agora sim, agora não...

Quaid não tinha despertado do sonho desta vez. Desta vez tinha ouvido um ruído. Era um ruído, sem qualquer duvida.
A lua se elevou o suficiente para que seus raios se filtrassem pela janela, a porta e a parte superior das escadas. Não havia necessidade de acender a luz. Para o que queria ver não necessitava dela. A parte superior das escadas estava vazia, como sempre.
Então o último degrau rangeu, foi um ruído mínimo, um suspiro se apossou dele.
Foi assim que Quaid conheceu o terror.
Outro rangido, e o ridículo sonho continuava subindo as escadas em sua busca. Tinha que ser um sonho. Afinal de contas não conhecia nenhum palhaço, nenhum assassino com um machado. De forma que, como aquela imagem absurda poderia ser verdadeira, a mesma que o despertava noite após noite, como podia ser algo mais que um sonho?
Entretanto, talvez houvesse sonhos tão absurdos que só podiam ser realidade.
“Nada de palhaços”, disse a si mesmo, enquanto ficava observando a porta, a escada e a mancha luminosa da lua. Quaid só tinha conhecido mentes frágeis, tão fracos que não puderam lhe dar a chave da natureza, a origem ou a forma de curar o pânico que agora o tinha escravizado. Quando enfrentavam o menor indício de terror no coração da vida, sempre vinham abaixo, ficavam reduzidas a pó.
Não conhecia palhaços, nunca os tinha conhecido nem jamais os conheceria.
E então apareceu: era o rosto de um idiota. Pálido como um lençol à luz da lua, com os traços juvenis machucados, inchados e sem barbear, um sorriso franco como o de um menino. Mordeu o lábio de tão excitado que estava. Tinha a mandíbula inferior cheia de sangue e as gengivas quase negras. Mas nem por isso deixava de ser um palhaço. Um palhaço, sem qualquer dúvida, embora o disfarce ficasse ruim, incongruente e patético.
O machado era a única coisa que não correspondia com o sorriso.
Quando o maníaco realizou pequenos movimentos de açougueiro com a arma, a lua se refletiu nela, e seus olhos negros brilharam ante a perspectiva de tanta diversão.
Parou quase no alto da escada, mas enquanto contemplava o terror de Quaid, seu sorriso não se fechou em nenhum momento.
As pernas de Quaid fraquejaram e caiu de joelhos.
O palhaço subiu outro degrau de um salto, com os olhos reluzentes, cheios de uma espécie de maldade benigna, fixos sobre Quaid. Sacudia o machado com suas mãos pálidas, em uma pequena paródia do golpe mortal.
Quaid o reconheceu.
Era seu aluno, seu coelhinho da Índia, transfigurado na imagem de seu próprio terror.
Ele. Ele entre todos os homens. O menino surdo.
Agora dava saltos maiores e fazia ruídos guturais, como se imitasse o chamado de algum pássaro fantástico. O machado desenhava giros cada vez mais amplos no ar, cada um deles mais letal que o anterior.
– Stephen – disse Quaid.
O nome não disse nada a Steve. Só viu abrir uma boca e tornar a se fechar. Talvez tivesse saído dela um som, talvez não. Não lhe importava.
A garganta do palhaço emitiu um grito, e o machado, seguro com as duas mãos, balançou sobre sua cabeça. Nesse preciso instante a pequena dança alegre se transformou em uma corrida, o homem do machado saltou os dois últimos degraus e entrou correndo no quarto, onde a luz o iluminou totalmente.
O corpo de Quaid se afastou pela metade para se esquivar do golpe mortal, mas não foi suficientemente rápido ou elegante. A lâmina fendeu o ar e rachou por trás seu braço rasgando-lhe quase todo o tríceps, destroçando o úmero e abrindo a carne do antebraço com um talho que por pouco não lhe alcançou a artéria.
O grito de Quaid poderia ser ouvido a dez casas de distância, mas essas casas não eram mais que escombros. Ninguém podia ouvi-lo. Ninguém poderia salvar-lhe do palhaço.
O machado, ansioso por acabar a tarefa, estava rachando-lhe a coxa como se fosse um lenho. A brilhante carne do músculo do filósofo, o osso e o tutano ficaram expostos por profundos talhos de quatro a dez centímetros de profundidade. A cada golpe, o palhaço puxava o machado para desencravá-lo, e o corpo do Quaid se sacudia como uma marionete.
Quaid gritou. Quaid suplicou. Quaid tentou convencê-lo.
O palhaço não ouviu uma só palavra.
Só ouvia os ruídos que tinha na cabeça: os assobios, os gritos, os uivos, os zumbidos. Refugiou-se em um lugar do qual nenhum argumento racional nem ameaça poderiam tirá-lo. Onde o batimento do seu coração era a lei, e o sussurro de seu sangue, a música.
Como dançava o menino surdo! Dançava como um bobo ao ver seu algoz boquear como um peixe, com a depravação de seu intelecto sossegada para sempre. Como jorrava o sangue! Como saía quente e em litros!
O pequeno palhaço ria contemplando tanta diversão. Tinha um entretenimento para toda a noite, pensava. O machado, amável e inteligente, sempre seria seu amigo. Faria cortes transversais e longitudinais, poderia cortar em rodelas e amputar, e além disso, podia manter vivo aquele homem que utilizava a astúcia, vivo durante um bom momento.
Steve estava mais contente que na Páscoa. Tinha o resto da noite pela frente, e toda a música que gostava de ouvir ressonava em sua cabeça.
E Quaid compreendeu, ao encontrar-se com o olhar ausente do palhaço por entre um ambiente ensangüentado, que havia algo pior no mundo que o terror. Pior que a própria morte.
Era o sofrimento sem esperança de salvação. Era a vida que se negava a acabar muito depois .que o cérebro tivesse pedido ao corpo que deixasse de existir. E o pior de tudo: havia sonhos que se tornavam realidade.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Não há prazer que se compare ao pavor.

Neste blog escreverei estórias de terror.